- Olha só! Ela está tão perto! Consegue ver, amor?
- Sim, sim! É você, querida!
- Sim, no ano que nos conhecemos. Olha só, eu estava tão perto, tão perto de ter minha vida mudada e não fazia a menor ideia.
- A gente nunca sabe. Todo Réveillon é assim, por mais planos que façamos, por mais expectativas que empreguemos, as coisas maiores, as mais marcantes, as viradas de vida, sempre são deixadas de fora da lista de desejos para o ano que se inicia.
- É sim, você tem razão. Olha só pra mim, tão compenetrada escrevendo tolices nesse bloquinho. Você não gostaria de saber o que está escrito?
- Boa questão, me fez lembrar de outra coisa. E se você pudesse falar com você mesma? Você sabe, não só olhar daqui de cima, mas conseguir falar de verdade com essa você do passado.
- Nossa, querido, mas já faz tanto tempo... Eu era tão jovem... Nem saberia o que dizer!
- Sim, e estava prestes a ter a vida mudada de cabeça pra baixo. Não te amedronta o fato de que ela pode se atrasar no dia que nos encontramos e perder o trem? E se ela não seguir os mesmos passos que você seguiu? Não tem medo?
- Sim, e estava prestes a ter a vida mudada de cabeça pra baixo. Não te amedronta o fato de que ela pode se atrasar no dia que nos encontramos e perder o trem? E se ela não seguir os mesmos passos que você seguiu? Não tem medo?
- Não! Porque ela sou eu, só que no passado. Nós só estamos espiando o que passou. São como sombras, você sabe, como o Dickens dizia, Sombras do Passado.
- Mas não faz o mínimo sentido! Nós estamos aqui conversando, enquanto ela está lá, grudada neste bloquinho escrevendo sabe-se lá o quê. Cadê o livre arbítrio nisso aqui? Ela tem o direito de fazer o que bem entende, não apenas repetir o que você fez!
- O que você quer dizer? Você sabe que está fora dos limites interferir nas coisas do passado! Só nos é permitido assistir, recordar. E outra coisa, por que você tanto quer interferir na vida dela? Você quer dar a ela uma chance de ter uma vida diferente da minha? É isso o que você propõe?
- Não é isso, querida, não fique assim! Eu só queria saber como isso tudo funciona. Você tem que concordar comigo que muito mais que uma lembrança ou uma sombra do passado, essa garota aí é só mais uma garota escrevendo num bloquinho antes de ir dormir. Amanhã ela tem todas as inúmeras decisões a tomar, como qualquer outra pessoa. Não está fadada a repetir suas ações. E por favor, eu mais do que ninguém quero sim que nos conheçamos. Ora, assim essa conversa vai ficar girando em círculos!
- Então o que você quer?
- O que eu quero? Não sei! Você é quem fez questão de espiar um fato do seu passado que nem você lembra mais. Pelo jeito, uma lembrança completamente irrelevante, de você sentada na cama, há o que? Vinte minutos escrevendo sem parar? Que tipo de lembrança é essa?
- Não sei querido, não entendo bem essa máquina. Isso tudo ainda é muita novidade pra mim.
- Tantas coisas para se rever do passado! O dia em que nos conhecemos, nosso casamento, o nascimento dos meninos... E você nos trouxe para um dia qualquer que nem tínhamos nos conhecido ainda! Deixe-me ver os comandos que você inseriu. (----) Querida, você pediu para voltar no tempo... No dia, no exato dia em que você começou a escrever nossa história juntos... Mas não faz muito sentido, uma vez que, olha só a data, é Janeiro, ainda faltam alguns meses para nos conhecermos. Como pode você estar neste momento “escrevendo” a história a dois, com alguém que você ainda nem conheceu?
- Bem... Escrevendo... Ela literalmente está escrevendo... E olha bem, olha só o que ela está escrevendo! Bem que eu não estava lembrada desta memória! Olha aí o que você procurava! O tal livre arbítrio! É lindo! Estamos assistindo um evento completamente novo do passado! Algo que não tinha acontecido até agora.
- Como assim? O que ela está escrevendo? Você está conseguindo enxergar daí?
- Aqui, deixe-me aproximar... Bem aqui! É isso querido, o evento novo que prova o livre arbítrio das sombras do nosso passado! Nesse exato momento eu estou escrevendo... sobre nós! Olha só!
- Mas... Mas como é possível? Como você naquela época poderia estar escrevendo algo que ainda vai acontecer? Estou completamente confuso agora.
- Ah, é simples! E nem precisa de máquinas caras e todas essas parafernálias tecnológicas como essa tranqueira aqui. Há séculos e séculos nossos antepassados já faziam isso!
- Isso? Faziam isso? Prever o futuro? Escrever algo que ainda vai acontecer? É assustador, olha lá, ela está escrevendo sobre o próprio futuro. Ela tem consciência disso?
- Claro que não! Querido, nós estamos tão cheios de tecnologia por todos os lados, que esquecemos desse dispositivo, esse truque tão usado por tantas gerações antes de nós!
- Que seria... ???
- A criatividade, meu amor! Ela não faz ideia do que está escrevendo. De fato não vai fazer sentido por algumas centenas de anos. Até alguém inteligente ler o escrito dela de uma maneira diferente, com um olhar mais aberto e apurado. E pronto! É descoberto mais um texto do passado, vivo como se tivesse escrito hoje! E cheio de reflexos do futuro.
- A criatividade, meu amor! Ela não faz ideia do que está escrevendo. De fato não vai fazer sentido por algumas centenas de anos. Até alguém inteligente ler o escrito dela de uma maneira diferente, com um olhar mais aberto e apurado. E pronto! É descoberto mais um texto do passado, vivo como se tivesse escrito hoje! E cheio de reflexos do futuro.
- Impressionante! E olha só, de fato é o momento inicial da nossa história! Muito antes de começar, você já tinha escrito...
- É. Mas é uma pena que isso só passou a fazer sentido pra gente hoje, tantos anos depois.
- Pois assim tinha que ser. O passado é fluido e mutável tanto quanto o presente. Você mesma está vendo isso.
- Estou sim, olha só, ela não larga a caneta...
- Então, provando que nossas versões do passado tem o mesmo livre arbítrio que nós no presente... Você não tem medo? Medo de que o livre arbítrio dela a leve para outros caminhos? E sua vida acabe diferente?
- A vida dela pode ser diferente, pois é só dela. A minha vida foi e é do jeito que é. Estou muito bem com meu passado, obrigada. Já a vida dessa moça aí tão parecida comigo, não sei para onde vai. Mas se ela for metade feliz do quanto eu fui e ainda sou, ela vai ser com certeza a segunda mulher mais feliz do mundo!
Aldrêycka Albuquerque
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