Duas moças inglesas. Uma chamada
Jane Austen, nascida em 1775 em Hampshire. A outra, Emily Brontë, nascida um
ano e doze dias após a morte de Jane Austen, em 1818 em Yorkshire. As duas moças
tinham pais religiosos. O pai de Emily, um clérigo anglicano, já o de Austen,
um pároco também anglicano. As duas moças começaram suas vidas literárias muito
cedo, tendo começado a escrever suas obras mais famosas em torno dos vinte
anos. Infelizmente ambas também morreram cedo. Austen morrendo possivelmente da
doença de Addison em 1817, aos 41 anos de vida. Emily Brontë, por sua vez,
morrendo aos 30 anos de idade em 1848, depois de um resfriado que virou uma
tuberculose e que se recusou a tratar. Ambas as moças não aproveitaram em vida
todo o sucesso que adviria de suas obras literárias. No caso de Jane, seis
obras completas, no caso de Emily, apenas uma única obra. E por aqui terminam
as semelhanças entre as duas moças.
Apesar de um contexto tão similar,
as duas escritoras tomaram rumos bem diferentes. Começando pelas obras, Jane
Austen sempre foi consagrada por suas tramas que sempre prezavam a virtude, o
amor, a justiça e o caráter. Emily Brontë por sua vez, com sua única obra O Morro dos Ventos Uivantes, conseguiu
chocar toda a sociedade vitoriana da época. Uma trama cheia de ódio, inveja,
remorso, um tipo de amor torpe e amargo, a falta de caráter e amor ao próximo é
o que encontramos em seu livro. É uma obra tão sombria e amarga, que foi
inicialmente publicada com autoria masculina, o que poderia ser mais facilmente
aceito pelo público. Só depois ficou claro que todo aquele enredo amargo e
personagens anti-heróis foram concebidos por uma moça tímida de vinte e sete
anos, a Inglaterra ficou chocada.
“Em 1847, Emily Brontë chocou o mundo da
literatura inglesa com a publicação do seu romance O Morro dos Ventos Uivantes. O que o público viu foram novos
tipos de heróis: uma marionete tirânica do mau, o próprio Satã humanizado, e
uma instável mulher casada à procura do seu amor perdido. Certamente, nada do
que se pode considerar como o típico estereótipo de um casal vitoriano do
século dezenove.” (traduzido de Céu e
Inferno: uma criação humana)
Ao se analisar as moças, de um lado
nos deparamos com a carinhosa “tia Jane”, tão bem relacionada com seus amigos e
familiares. Uma querida não só por sua irmã Cassandra, mas também por sua
sobrinha, irmãos e amigos. Em todos os relatos da vida da Jane Austen
encontramos uma moça íntegra, cristã, simpática e verdadeira. Todos só tinham
os melhores elogios a tecer sobre seu caráter. Mesmo quanto estava perto da
morte, moribunda, acreditava em sua recuperação até o final. E em suas últimas
palavras, depois de lutar de todas as formas por recuperação, não temeu a morte
e disse, entre as muitas dores que sentia “Não quero mais nada além da morte”.
“Abriu
a boca com sabedoria e a lei da clemência estava em sua língua.”
(Inscrição no túmulo de Jane Austen)
Do outro lado temos a sombria Emily
Brontë. Uma moça tímida ao extremo, que costumava não olhar nos olhos de
ninguém. Era conhecida por ter sangue frio e nervos de aço. Uma história
curiosa que prova essa má fama da moça, foi quando ao passear ao ar livre, foi
mordida por um cão raivoso. Sua reação foi simples: caminhou tranquilamente pra
casa, onde silenciosamente cauterizou sua ferida com um ferro quente que
encontrou na cozinha. O feito só foi sabido pela família muito tempo depois,
quando sem querer, deixou aparecer a cicatriz vermelha da perna para familiares.
“Uma vez ela foi mordida por um cachorro que ela viu
correndo enlouquecidamente. Ela
não disse uma palavra a ninguém, mas foi à cozinha e queimou a si mesma na carne dilacerada até o osso com
ferro quente, e ninguém soube disso até que a cicatriz
vermelha foi descoberta acidentalmente algumas semanas depois,
e um questionamento simpático trouxe a
história à tona.” (Traduzido do Wikipedia)
“Apesar de bastante alta, comia muito pouco
e poderia se fazer morrer de fome quando estava triste ou quando queria impor
seu próprio ponto de vista.” (Traduzido de The Reader’s Guide to
Wuthering Heights)
Toda esta introdução serve como pano
de fundo para que eu demonstre o tamanho da minha surpresa ao encontrar uma
obra tão amarga e doentia como O Morro dos Ventos Uivantes (publicada em
Londres, 1847). Sinceramente, ainda não entendo como alguém pode classificar
esta obra como um romance do tipo “Love Story”.
Não que seja um livro ruim. Apenas não existe amor no livro! Simplesmente não
há! Pelo contrário, ele é cheio de ódio, rancor e malignidade. Ou seja, ou
criou-se aqui uma nova espécie de amor, ou a Emily Brontë estava falando de
alguma outra coisa bem diferente em sua obra.
“Diferentemente da maioria dos romances, os
protagonistas do O Morro dos Ventos
Uivantes são todos anti-heróis; a perfeita antítese do que um herói
deveria ser. Ao invés de serem heróicos e terem compaixão, Heathcliff e
Catherine são egoístas e mesquinhos. E ao invés deles serem felizes no amor, Catherine
casa com outra pessoa e fere os sentimentos de Heathcliff. Muito orgulhosos
para contarem um ao outro dos seus verdadeiros sentimentos, eles só brigam e se
zangam, destruindo a vida dos dois nesse processo. (...) O livro inteiro é a
história da destruição da alma humana; como o amor pode salvar ou condenar uma
pessoa. Brontë traz toda uma nova perspectiva para o amor.” Leyla Shakew (traduzido de The Literature
Network)
Eu sinceramente não acredito que
exista qualquer outra forma de amor que não seja bondosa, que queira e faça o bem
às partes envolvidas. Então dessa forma, eu nunca chamaria de amor essa raiva e
obsessão doentia de Catherine e Heathcliff. Você não consegue simpatizar com
nenhum personagem do livro, todos são cruéis e egoístas. Quando a sociedade
vitoriana da época não se surpreendeu tanto quando pensavam que a obra tinha
sido escrita por um homem, é por que não se conseguia conceber uma moça
escrevendo coisas tão malévolas e cruéis assim. Eles estavam acostumados com a amargura de
figuras como o sombrio Lord
Byron, e deixavam a leveza, as boas maneiras e os exemplos de caráter e
moralidade para mulheres como Jane Austen.
Depois da morte de Emily Brontë,
por pouco se saber de sua vida devido a sua reclusão social extrema, sua irmã
Charlotte Brontë (também escritora), tratou de criar uma atmosfera reativa
sobre a vida da irmã, para justificar seu isolamento social e sua mente sombria.
“A disposição da minha irmã não era muito
social. Circunstâncias favoreceram e acentuaram essa sua tendência a reclusão.
Exceto para ir a igreja ou caminhar pelas colinas, ela raramente cruzava os
limites da casa. (...) Ela podia ouvir outras pessoas com bastante interesse, e
até falar deles com bastante detalhe, mas falar COM eles, isso ela nunca fazia.
Ela raramente trocava uma simples palavra com eles.” (Traduzido
do Wikipedia)
Curiosamente no Morro dos Ventos
Uivantes, quando está próxima a morte de Heathcliff, ele está com o corpo e a
alma abatidos. Recusava-se a comer para que a morte chegasse o quanto antes. E
por conta disso, perde seu porte físico, ficando magro, pálido e com uma expressão
medonha como se tivesse saído dali uma pessoa, e um ser de outro mundo tivesse
tomado o seu lugar. A expressão do seu rosto era tão pavorosa, que assustou
Nelly, uma criada que conviveu com ele desde quando foi adotado pela família
Earnshaw. A curiosidade aqui reside na própria morte da Emily Brontë, no auge
dos seus 30 anos. Ela pegou um resfriado no dia do enterro do seu irmão, e se
recusou a tratá-lo. O resfriado virou uma tuberculose que começou a abatê-la
ferozmente. Ela nem permitia que médicos fossem chamados, nem se permitia tomar
os remédios que eram enviados para ela. Em apenas três meses Emily definhou até
a morte, e em seu último suspiro deve ter se arrependido da sua estúpida inconseqüência
e falou para sua irmã: “Se você ainda for chamar um médico, eu agora aceito ser
tratada”. Obviamente, não dava mais tempo. Emily então faleceu tão magra, que
seu caixão teve apenas 40 centímetros e meio de largura (por 1,70 de altura),
esta largura era comum apenas para caixões de criança, o que impressionou até o
carpinteiro que o confeccionou.
Dito tudo isso, aproveito para
deixar claro que a obra de Emily Brontë deve ser lida sim, é um clássico! Mas
não espere uma experiência de crescimento interior e introspecção, pois isso
não vai acontecer. No máximo você vai terminar a leitura chocada, ao mesmo
tempo que não vai conseguir largar o livro. A trama é instigante e te prende do
começo ao final. E eu sinceramente espero que você não suspire de amores por
Heathcliff. Acho que o mundo já está cheio de “amores” danosos demais para você
desejar algo tão ruim para amar. Então a dica é: não seja uma Catherine Earnshaw
(muito menos Cathy Linton). E o mais importante: se encontrar um Heathcliff por
aí, não perca tempo. Corra sem nem olhar pra trás.