sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Crônicas da vida



É uma verdade universalmente conhecida, que uma mulher solteira estando apenas de passagem em qualquer cidade que não seja a que reside, jamais irá recusar um convite para jantar. Principalmente se for um convite de alguém conhecido, interessante, o qual ela já reserve uma quedinha há alguns uns anos. Não poderia dizer que foi difícil decidirem para onde ir, apenas quando e quem iria convidar quem. Enfim ele  se decidiu, e escolhera qualquer lugar (contanto que fosse perto e cômodo para ele). Ela só aceitou educada e rapidamente. Iria para qualquer lugar, só precisava sair daquele quarto de hotel impessoal e pesado. 

Apesar de se conhecerem há tanto tempo, ainda existia uma fina membrana pegajosa de receios e reservas entre os dois. Com certeza mais da parte dele do que dela, mas ninguém negaria que junto dele ela realmente fica diferente. Enfim, nenhum dos dois estavam muito tranquilos na presença exclusiva um do outro. Era um incômodo tão fino e transparente, que mal conseguiam perceber, poderiam facilmente culpar o calor, a chuva, o trânsito ou a comida ruim. Mas eles nunca estiveram cem por cento ali, sempre escondiam algo. Mas naquele dia foi diferente. A represa estourou e nenhum dos dois sabia direito como nadar.

Ambos começaram falando do óbvio, como sempre faziam. Coisas superficiais que iriam acabar desembocando em uma acalorada discussão sobre o que cada um deveria melhorar, ou o que cada um tinha de diferente e melhor que o outro. É verdade que não eram assim tão escancarados, as discussões tinham um nível de abstração tão rebuscado que eles geralmente só entendiam que passaram horas se alfinetando, à noite, naquele tempinho antes de pegar no sono, quando finalmente juntavam um comentário ácido com o mal estar que sentiram, e tudo passava a fazer sentido. Mas eles nem deixavam de se falar por causa disso, ou de se gostarem menos. Só não se aceitavam por inteiro. Cada um tinha sua lista de melhorias e inaceitabilidades a respeito do outro. Era ela que pensava demais e não agia; Era ele que agia demais e tinha pouco tempo para pensar. Era ela que não se aventurava; Era ele que vivia se jogando destemido na vida (e nas camas alheias). Eles não se aceitavam, mas em algum nível subliminar eram apaixonados um pelo outro.

Apesar da conversa de sempre ter surtido o efeito de sempre, ao saírem do restaurante eles fugiram do script. Ela deveria ter entrado rapidamente no primeiro táxi, e deixado ele plantado em pé de frente a porta, enquanto ela lembrava de se despedir dele, e com um beijo no rosto eles se deixavam insossos e insatisfeitos. Mas naquele dia foi diferente. Parecia que todos os táxis tinham sumido, e a etiqueta exigiu que ele esperasse um com ela. E o que começou com uma noite fria, sem táxis e um ensaio de uma garoa, descambou nela nos braços do rapaz. Assim, naturalmente, como se fossem acostumados a isso, como se tivessem intimidade e acesso aos corpos um do outro. Ninguém diria que era o mesmo casal que mal se tocavam à mesa, no restaurante atrás deles dois. Ali eles se acessavam como se já conhecessem o caminho. E havia um acesso livre mútuo ali, ambos conheciam a estrada e estavam dispostos a percorrê-la enquanto desse. Enquanto não se acordassem e visse que tinha sido imaginação ou alucinação. Mas era verdade, eles estavam juntos. 

Todavia não deixaram suas essências, uma hora deixaram um a boca do outro, e ainda entrelaçados, surgiu um convite para ela ir para a casa dele. Ainda era o rapaz de sempre. Ela respirou fundo tentando sufocar todo o desejo que sentia, e sua resignação informou que não iria. Que ele pensasse melhor nisso hoje e que se amanhã ele sentisse o mesmo, se pela manhã restasse ainda alguma coisa, ligasse pra ela. Ainda era a moça de sempre. Ele sentiu uma névoa de arrependimento cair sobre eles, e quase tomou os beijos de volta e soltou a moça no meio da rua. O táxi do alívio apareceu, poupando os dois de mais embaraços. Ela entrou sem cerimônias, apenas um aceno leve com o queixo e foi embora atravessar aquela cidade estranha e odiosa. Naquela noite ela demorou um pouco mais, mas dormiu um sono denso, pesado e arrastado. Acordou com um buraco que transpassava do estômago à alma. 

O rapaz não conseguiu dormir. A cada minuto ele amaldiçoava o minuto que a beijou. Foi inconsequente, sabia que não deveria ter feito isso. Como esquecer tudo isso agora? Como se livrar dela, da sua presença, seu cheiro e seu gosto? Precisou muito mais que água, sabão, cerveja e uma noite inteira em claro. Ele simplesmente não conseguiu esquecer dela, do que fizeram, e principalmente do que sentiram. Já era manhã e ele não conseguia tangibilizar em palavras o que tinha restado da noite anterior. Mal conseguia discernir o que tinha acontecido do que ele tinha imaginado, o que tinha de fato ocorrido do que ele tinha pensado em fazer mas não fez. Ele mais uma vez não tinha o que dizer, iria escolher o caminho mais curto do silêncio, era seu dispositivo de auto preservação falando mais alto. Era ele fazendo papel do homem que ele decidiu ser. Mas esqueceu que ela continuava sendo a intempestiva criatura de sempre, que só esperou dar dez horas para enviar um dolorido "o que sobrou?" para ele.

Não posso dizer que ele não pensou por pelo menos quarenta minutos em simplesmente ignorar a mensagem, como tantas vezes já tinha feito com textos e quotes que vez por outra ela resolvia mandar para alfinetá-lo. Ele não respondia e fingia não ligar. Ela esquecia e fingia acreditar que ele simplesmente não se importava. Mas naquele dia foi diferente, ele não conseguiu se conformar com o silêncio. Resolveu que aquele seria o último dia daquela relação de borda deles dois. A partir de hoje eles iriam ao centro de tudo, iriam mais fundo, não importa se ele iria se expor, ele resolveu enfim se desarmar. Marcaram um almoço em um lugar claro de toalha de mesa florida. Por mais indigesta que seria aquela conversa, por menos apetite que eles tivessem, foram lá os dois. Dessa vez ele escolheu um lugar que era longe para os dois. Talvez para dar a ambos tempo, na ida para decidirem o que falar, e na volta para se arrependerem do que não disseram.

Eles se cumprimentaram com um beijo murcho no rosto. Ele mal conseguia sustentar aqueles pequenos olhos nos dela. Ela foi quem levantou a bandeira branca, ao procurar a mão do rapaz em cima da mesa, e com aqueles olhos enormes cheios de vida dizer "então, o que restou?". Era final do Fla-Flu e era só o rapaz e a bola no Maracanã lotado. Seria apenas chutar para o gol, caso não houvesse um exército de dúvidas e neuras o impedindo de marcar o gol. Ele respirou fundo, fechou os olhos e chutou com tudo. E foi o pênalti mais lindo visto apenas por duas pessoas.

"- O que sobrou... Não sobrou muita coisa de ontem. Na verdade eu mal consigo lembrar o que de fato aconteceu, e o que eu só apenas imaginei. Eu passei a noite em claro lembrando até do que não aconteceu. Repassei cada palavra que você falou, cada uma que eu não disse, cada... beijo... nosso... E sinceramente, não sei se restou alguma coisa... intacta! Está tudo mexido aqui na minha cabeça, então resolvi voltar e pensar o que tinha aqui dentro, antes de tudo isso. Então percebi que tinha muito mais do que eu imaginava, ou melhor, muito menos... Na verdade tinha um buraco do tamanho de Júpiter aqui em mim, que eu mal percebi enquanto você o escavava. Você de pá em pá levou pra si tanto de mim, que eu nem saberia precisar. Ficou só um espaço que eu não consigo mensurar. Então primeiro eu me revoltei, como é que você ousa me roubar de mim! Mas então percebi, a verdade sempre esteve na minha cara e eu não percebi. Você não abriu o buraco, você o descobriu. Ele estava encoberto até então. Por isso eu sentia aquela sensação de perda, de insuficiência depois das nossas conversas. Não era você que me deixava mal, ou nossas conversas. É que só do teu lado é que eu dava conta do buraco que existia em mim. Não que junto de você eu me sinta incompleto, não é bem isso. Na verdade, era isso mesmo que eu pensava. Era. Mas isso foi antes. Antes de ontem, de tudo aquilo... Eu enfim percebi que junto de você é onde eu me sinto completo. Como se junto de você eu tomasse posse de um pedaço de mim que até então eu não sabia que faltasse. Você me completa, entende? Com você eu... eu me sinto em casa... eu vejo um outro pedaço de mim olhando pra mim. Você preenche o que só você me fez perceber que me faltava. Eu não sei se você sente o mesmo, provavelmente não desse jeito, mas... Bem, eu precisava falar tudo isso. Pois foi isso que sobrou. Foi isso que restou da gente... pra mim. Eu sei que isso agora é muito pra qualquer um de nós poder digerir... Mas precisaremos encarar isso, nada mais vai ser como antes. Eu quero você do meu lado, eu quero você, está entendendo?"

A moça que sempre tinha as melhores respostas simplesmente ficou sem palavras. Não precisava, ele falou tudo o que ela sentia. Eles só ficaram ali se encarando, com olhos marejados e o coração aos pulos. Resolveram ir embora só tomando uma água. Água é imprescindível nesses momentos. Muita água e calma. Eles tinham todo o tempo do mundo, estavam estreando o primeiro dia da vida deles juntos. Aprenderam a andar com calma e a não economizar palavras quando fosse pra falar do quanto se gostavam. E seguiram. Enquanto uma vida inteira estava se abrindo vagarosamente para eles. E tudo foi diferente depois daquilo. Enfim ambos puderam responder a pergunta crucial, o que tinha sobrado? O que restou? Restou uma vida inteira.


Aldrêycka Albuquerque

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Destino se inventa

O primeiro texto do ano chega com oito dias de atraso. E nem é de minha autoria! Mas é tudo o que eu gostaria de falar. Então faço minhas as palavras do querido Ivan Martins. Enjoy it!



 

Destino se inventa

Se eu fosse mulher, tivesse 30 anos e não estivesse num relacionamento sério, minha lista de planos para 2014 começaria com quatro palavras: arrumar uma relação legal.

Imagino, claro, que a mulher de 30 se parece comigo na idade dela: meio carente, um tanto romântico e cheio de planos para o futuro. Planos, que, no meu caso, incluíam alguém para partilhar a vida.

Há muitas pessoas que não sentem assim, evidentemente. Há caras e garotas que vivem bem sozinhos. Tão bem, na verdade, que não desejam juntar os trapos e se comprometer. Eles transam quando querem, ficam bem sozinhos e extraem da sedução frequente aquela satisfação que outras pessoas só encontram na intimidade duradoura com uma mesma pessoa – por mais que ela traga seus próprios problemas.
Não é raro que se tenha inveja desses sedutores solitários, mas suspeito que eles, de vez em quando, também gostariam de ser diferente do que são.

Mas, se você sente que não nasceu para circular de forma autônoma, se você, no fundo da sua alminha inquieta, percebe aquele desejo ancestral de acasalar e (quem sabe?) fazer família, temo que a única solução para 2014 seja procurar um par.

Parece absurdamente óbvio o que estou dizendo, mas, acreditem, não é.

Estou cansado de conversar com mulheres de 30 anos que parecem ter desistido do projeto casal. Falam em adotar sozinhas uma criança, congelar óvulos ou viver avulsas para sempre, navegando entre um casinho e outro, entre um e outro site de relacionamento. Estão jogando a toalha, como se dizia antigamente – embora sejam jovens, atraentes, interessantes, bem sucedidas no trabalho. Um paradoxo de saias.

O que elas contam é que chegaram a uma idade em que é preciso tomar decisões, mas não há em volta delas sujeitos que queiram dar um passo adiante – ou, frequentemente, sujeitos com quem elas gostariam de dar o tal passo. Homem sempre existe, diz uma amiga minha. Mas cadê o homem que a faça sentir apaixonada? Ou que, tendo penetrado a couracinha afetiva dela, não se mostre mais interessado em seguir livre, rompendo outras couraças por aí?

A vida não é simples, naturalmente. Frequentemente, porém, ela tem solução. Que, neste caso, pode estar na atitude.

Acho que nós, homens e mulheres do século XXI, ainda temos um olhar adolescente para as relações afetivas. Queremos que nos caia do céu um romance arrebatador, pronto e completo, sem contradições ou dúvidas. Sem defeitos constrangedores também. Exigimos ser amados pelo que somos, mas estabelecemos condições elevadas para amar. Tendemos, de forma tola, a nos apaixonar pela beleza, pelo charme, pelo riso. Apostamos no clichê e na superfície, mas aspiramos ser tratados de outro jeito: queremos ser apreciados pela profundidade dos nossos sentimentos e por nosso caráter.

Outro tipo de atitude é possível, porém.
Outro dia, conversando com uma amiga sobre o casamento dela – que já tem 10 anos – ouvi algo surpreendente. “Eu tive muita sorte”, ela me disse. “Meu marido é um cara maravilhoso, mas eu poderia ter amado alguém muito pior.” Vocês percebem como é generosa essa última frase? “Eu poderia ter amado alguém muito pior” significa, essencialmente, que ela estava pronta quando o sujeito apareceu. Ele não precisava ser rico, lindo, heróico. Seria suficiente que a encantasse – e ela, lindamente, admite que não teria sido difícil. Um bom homem bastaria.

Acho que há nessa história ainda mais do que parece.

Nela se manifesta a disposição da mulher – embora pudesse ser do homem – de inventar o seu próprio destino. Acho que o romantismo pueril disseminado à nossa volta (em conversas, filmes, novelas, livros e até colunas da internet) nos transforma em criaturas passivas diante da nossa própria vida.

Agimos como se o amor fosse um evento externo à realidade. Partilhamos a convicção estranha de que diante do amor não temos nada a fazer. Acreditamos que a única atitude frente ao afeto é esperar que ela apareça. Não entendemos esse aspecto da existência como algo sob nosso controle - embora ele seja mais uma etapa da existência, outra experiência essencial da qual não faz sentido abdicar, mas diante da qual não deveríamos apenas sentar de boca aberta, embasbacados e passivos.
 

Em outras palavras, me ocorre que construir uma relação estável é como terminar o colégio, escolher a faculdade, lançar-se a uma profissão, sair da casa dos pais: uma experiência que precisa ser praticada, tentada, pensada e, de vez em quando, improvisada e remendada. Ao final, talvez, aceita da forma como apareça.

Logo, se eu fosse uma mulher de 30 anos sem uma relação estável - ou um homem da mesma idade e na mesma situação –  olharia em volta neste primeiro dia do ano da graça de 2014, seja na praia chuvarenta ou na rua ensolarada da cidade, em busca de alguém com que eu quisesse passar os próximos dez anos.

Ele ou ela pode estar pertinho. Ou não. Mas é certo que essa pessoa existe, porque não se trata de um semideus ou de uma criatura engendrada pela Providência. É um homem ou uma mulher comum, como tantos, a quem você concederá, de forma particular e única, embora não irrefutável, o privilégio do amor. A quem você oferecerá o direito a partilhar alguns dos momentos mais importantes da sua vida – e que receberá, atônito ou comovida, a honra do seu amor. Estar com ele ou com ela será infinitamente melhor do que jogar as mãos para o alto e desistir. Aliás, como regra não se desiste da vida, nem das coisas que a tornam importante.