Não sei quem você se tornou. Nem sei mais com quem convivo. Se com o dono da mão que afagava, ou dessa mão que hoje profana. Se com aquele que sonhava com o futuro, ou com esse que hoje tenta viver a todo custo um passado que não teve.
Nem sei com quem falo quando escuto argumentos imbecis e palavras vazias de alguém que costumava ser sábio e ponderado. Não sei onde foi parar o equilíbrio, frente a tanta alteração de espírito. Não sei onde foi parar a unção frente ao oco da alma.
Não sei onde foram parar os conselhos, dentre tantas maldições. Nem muito menos sei onde se esconderam as historinhas antes de dormir, dentre tanta música vazia que hoje enchem seus ouvidos.
Nunca soube por onde andavam seus pensamentos naquela época – minha ingenuidade não permitia tal reflexão. Mas hoje eu tremo ao imaginar o quão podre, obscuro e fétido provavelmente é o lugar onde atualmente estejam pairando os seus pensamentos.
Me aterroriza o fato de termos o mesmo sangue. Me aterroriza o fato de ver você ao me olhar no espelho. Medo de ser uma você em construção. Medo de ter de cometer todos os seus erros. Me assusta escutar teu tom na minha voz. Me amedronta ver os movimentos das tuas mãos nas minhas. Já dizia o poeta que existe mais de você em mim do que um dia eu poderia (ou desejaria) imaginar – rezo a Deus todos os dias para me livrar dessa sina. Pois se eu estou me tornando você, creio que estou mais adiantada no processo degenerativo pelo qual você sofreu. Minha vantagem é estar a par da transformação e assim poder impedi-la – ou pelo menos tentar, e tentar, e tentar...
Eu queria não ser, eu queria não ter. Mas sei que mesmo diferente, sou semelhante de você. E sei que mesmo contra, irei cometer alguns dos erros que você já cometeu. Mas não seria por burrice nem estupidez, porém pura genética.
Aldrêycka Albuquerque
"Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e som. O resto é mar, é tudo o que eu não sei contar. São coisas lindas que eu tenho pra te dar." Lulu Santos / João Gilberto