A menina com seu vestido púrpura olhava para o
céu, com os cabelos tremulando com o vento fresco da tarde. Ela, no alto dos
seus seis anos, encarava aquela imensidão estupidamente azul e sem nenhuma
nuvem, como quem duvida de uma paisagem impossível demais para ser real. Então
começa a sentir o coração se apertar no estômago. Aperta os olhos e desce o
rosto para o chão. Ela está em um campo de girassóis. As flores se estendiam
por toda a superfície que sua visão conseguia enxergar, até se misturarem ao
borrão do horizonte que cortava tudo aquilo em duas partes: a incrível e a
inacreditável. Os girassóis não eram comuns, ela nunca tinha visto na vida algum
de outra cor além do amarelo, mas aquele campo mais parecia uma paleta de pintura
daquelas que sua professora da escolinha usava. Havia girassóis ali de cores
que ela nem sabia que existia. Sentindo que aquilo era fantástico demais para
aceitar de bom grado, ao invés de simplesmente correr e perseguir alguma
borboleta, Beatriz preferiu duvidar. Ela questionou bravamente da cor dos
girassóis à intensidade do céu. Mas como sua descrença não afetou em nada
aquele lugar, ela começou a chorar. No início eram lágrimas esparsas e suaves,
que docemente cumprimentavam a terra onde estavam seus pés descalços. Mas logo
depois elas tomaram corpo, ritmo e intensidade, dando vida a um rio calmo que –
por mais revoltante que fosse, completou aquela paisagem perfeita.
É impressionante como brilham as
vidas que vemos espalhadas pela rua. Eu caminho pela cidade e só observo as
pessoas. São tão lindas, tão cheias de mistérios. É um sorriso preso no canto
da boca, um olhar distante, gargalhadas cheias de intenções... Quanta história
carregariam? Eu seria capaz de trocar um pouco da minha vida só para conhecê-las
um pouco mais. São tão radiantes, tão interessantes, tão... não-eu. Que chega
dá vontade de vivê-las. Uma a uma. Só para provar como seria, uma vezinha só,
não ser eu.
Copie
Conforme.
Cópia Fiel. Cópia Certificada. Certified
Copy. Copia Conforme. Escolha você em que idioma quer ler o título deste
filme. Já que nem o diretor iraniano Abbas
Kiarostami, quis se prender a um idioma apenas, dançando entre
inglês-francês-italiano neste filme único. Sem par. Unique.
Não costumo falar de filmes aqui no blog. No máximo transcrevo uma
cena, uma citação. Mas Copie Conforme (sim, prefiro o título em
francês) precisa aqui de uma exceção, de um post
inteiro e eu vou dizer por quê. Assisti esse filme pela primeira vez e a cada
cena que se passava eu alternava entre admiração e completa confusão. Viajava
nos diálogos, na discussão entre ‘cópia e original’, mas me perdia
completamente no enredo. Quando o filme acabou, assisti uma segunda vez alguns
dias depois. Então asseverei: agora sim, entendi. Então fui pesquisar o dito
cujo na internet. E todas as sinopses e resenhas que li a respeito, falavam de
tudo, sob todos os aspectos. Menos sobre o que eu tinha entendido. Será que eu
entendi o filme errado? Ou minha percepção é que foi peculiar? Pois bem, não
sei. Mas vim aqui registrar. Calma lá, você vai entender tudo assim que eu
terminar de escrever. Comecemos pelo começo.
O filme se inicia com uma reunião de lançamento do livro (homônimo
ao título do filme) do escritor inglês James Miller, na Itália. Logo na
primeira cena você vê a sala cheia e as duas cadeiras da frente vazias com o
aviso de "reservado". Apresenta-se o escritor, que discorre em um
longo discurso sobre a importância e valor de uma cópia mediante seu original -
tema este do livro. O escritor pede desculpa por seu italiano, se arriscando
apenas a falar um pouquinho nesta língua, porém faz toda sua apresentação em
inglês. Ao longo do seu discurso, chega uma mulher e senta em uma das cadeiras
reservadas (a outra cadeira é ocupada pelo tradutor do livro). O filho da
mulher depois chega, e atrapalha de todas as formas o que o escritor está falando,
tirando completamente a atenção do filme ao que ele diz. Apesar de ser
interessantíssimo o que o escritor esteja falando e o quanto a mulher se mostra
interessada pelo assunto, o menino irritantemente tenta tirar sua atenção.
Pois bem, vou tentar não dar muitos spoilers, mas apenas tenham cuidado daqui pra frente se você ainda
não assistiu o filme.
Ao ler o que tem na internet a respeito de Copie Conforme, vi que fala-se bastante sobre a discussão sem fim
dos personagens a respeito da ‘cópia e do original’. Discute-se insistentemente
do início ao fim, se é válido ou não a importância dicotômica que nossa
sociedade dá ao que é original e ao que é cópia. Discute-se se isso faz algum
sentido uma vez que, até que se descubra que um(a) peça/quadro/jóia é um(a) cópia,
o objeto é admirado e valorado como original. Faz todo sentido. Se um leigo
olhar uma réplica perfeita da Monalisa, até mesmo vê-la pela internet, e não
tiver noção do que se trata, ele vai dar valor aquela réplica pelo que ela
representa a ele, sem prejulgá-la por não ser original.
Dito isso, acredito que esse tema, apesar de ser deveras
interessante, não acho que seja o objeto central do filme, porém apenas um pano
de fundo incrivelmente instigante. Acho que o diretor ousou fazer o contrário
do que vemos no cinema: ao invés de algo irrelevante tomar seu papel de pano de
fundo, ele escolheu uma questão interessante, instigante, que tinha tudo para
receber o papel principal e a colocou como parte do cénario. Para mim o assunto
principal ali era a relação do escritor e a linda Juliette Binoche. E eu vou explicar o por quê.
Agora o aviso é expressamente reforçado: se você ainda não
assistiu o filme, pare por aqui e só volte após ter assistido-o pelo menos duas
vezes. Se quer seguir com a leitura ainda assim, vai por sua conta em risco. Não
me responsabilizo pela dimensão do estrago que os spoilersirão fazer a você. Boa sorte.
Se eu tivesse de interpretar o filme, teria duas teorias das quais
não saberia eleger apenas uma como a mais fiel
ao enredo. Mas irei aqui falar sobre cada uma delas, ficando a seu critério
decidir qual delas é mais original.
Quando comecei esta resenha, falei que ao assistir pela primeira
vez o filme, eu oscilava entre empolgação e completa confusão. A empolgação eu
já expliquei, a questão do original e da cópia é realmente interessante. Mas é
da confusão que eu vou falar daqui pra frente. É sobre a confusão que eu queria
falar, apesar de toda a introdução pífia que você leu até agora. Pois bem, o
enredo me confundiu. Eu me perdi pelo menos umas três vezes. Por três vezes (pelo
menos) eu não saberia dizer quem eram os personagens principais do filme. Não
que fossem muitos, pois não são, longe disso! O filme se passa todo com a câmera
focada em apenas duas pessoas: o escritor e a mulher, ao longo de um dia
inteiro. Sem tirar a câmera deles dois nem por um instante. Não era isso, não é
que eu não saberia dizer quem eles eram, mas quem eles representavam. Aqueles
dois eram amigos? Era apenas um escritor e sua fã? Eram marido e mulher? Eram dois
loucos? Sim, eu cheguei a pensar que um deles, ou até os dois, eram loucos
varridos. Vou dizer o motivo.
O enredo é
linear.
Não sei o que isso quer dizer, mas li várias vezes isso ao pesquisar sobre o
filme. Não, não sei o que linear significa neste contexto, uma vez que se enredos fizessem trajetórias, Copie Conforme percorreria um oito
invertido: o símbolo do infinito. Pois começa e termina e você continua
perdido. Dito que não achei o filme linear, vou explicar por que. No início a
mulher aparece como uma fã do escritor, que compra 6 livros dele – mesmo já
tendo uma cópia – e pede para que ele autografe todas elas. O filhinho dela
sabe alguma coisa que não sabemos, e questiona o motivo dela não ter deixado o
escritor ver o sobrenome dele. Depois disso o escritor e a mulher vão passear
de carro e discutir, discutir, discutir... Até o final do filme.
Você consegue claramente perceber que a relação dos dois muda
muito rapidamente ao longo do filme. Vai desde a timidez, dos dois se
conhecendo, passa para o flerte, a intimidade, depois o desgaste, a frieza...
Fiquei pensando (e eis a minha primeira teoria) que o diretor quis mostrar quinze
anos de casamento numa tarde. Toda a evolução, todo desgaste de quinze anos de relacionamento
expostos numa tarde. Pensei que seria isso. Mas agora tenho minhas dúvidas,
pois ao assistir o filme pela segunda vez, achei algumas pistas que me fizeram
formular uma segunda teoria que pra mim é a mais plausível. Veja se para você
também.
A mulher parecia que estava fazendo uma tour de recordação para o marido. Foi essa minha percepção. Parecia
que o marido tinha esquecido dela e de seu filho, e ela estava sutilmente (porém
nem sempre assim tão sutil) tentando trazê-los de volta a mente do marido. E
eis as pistas que eu achei. Decidi listá-las para que esse post não vire um Vade Mecum.
E você que ainda não assistiu o filme e está lendo isso –
insistente, hem? Dessa vez não tem remédio, asseguro que a partir daqui você
vai entender pouquíssimo, quase nada. E o pouco que entender, vai tolher sua
imaginação e raciocínio perceptivo quando enfim foir assistir ao filme. Você
foi alertado.
Pistas Que Encontrei:
1.Porquê a cadeira da mulher está reservada para ela? Se ela é
apenas uma fã, porque teria este prestígio todo?
2.O menino questiona a mãe o motivo dela não ter permitido que o
escritor visse o sobrenome dele – para mim isso prova que o menino é filho
dele, porém o escritor não sabe. Na verdade não lembra. E para não chocá-lo ou confundi-lo,
a mulher prefere não dizer nada.
3.O escritor pergunta se a mulher tinha casado naquele lugar –
primeira parada que ela faz no passeio. O celular interrompe a resposta dela,
mas fica claro que ela não queria responder. Parecia que não era o momento
certo.
4.O escritor passava a mão no cabelo, desconfortável, toda vez que a
mulher mostrava alguma coisa que pela forma que ela falava, eram lugares e
coisas que deveriam parecer familiar para ele. Ele parecia confuso às vezes,
mas não parecia lembrar por completo.
5.Na cafeteria, ao ir atender o telefone, o homem fica do lado de
fora e a mulher conversa com a dona da cafeteria. A senhora perceber que eles
são casados, e a mulher não nega, e conta a história de que o marido dela só se
barbeia a cada dois dias. Nesta conversa também descobrimos que o homem só fala
inglês e a mulher fala além do inglês, italiano (pois mora ali há 5 anos) e francês,
sua língua pátria.
6.Nesta mesma cena a mulher chora ao ouvir o escritor contar a
história de uma mulher e seu filho uma praça (acredito que a mesma praça que
ela leva o homem posteriormente) e depois da visão que ele tinha da mesma
mulher pela janela de uma pousada que ele estava (pousada que eles passaram a
Lua de Mel na última cena do filme, pelo jeito.)
7.Ainda na mesma cena, a mulher diz para o escritor que a dona da
cafeteria tinha dito que eles eram um casal. O homem ri. A partir daí eles
passam a se comportar como um casal. Algumas resenhas que li diziam que eles
estavam fazendo o papel de uma “cópia” de um casal “original”. Mas não
concordo. Vejam a seguir o por que.
8.A relação dos dois começa a ficar mais íntima, e com isso as
discussões e cobranças começam a ser mais intensas. Ela leva o homem numa
capela que ela diz que eles se casaram há 15 anos. Ele fica extremamente
desconfortável, alisando o cabelo mais uma vez, parecia achar aquilo familiar,
mas não conseguia saber por que.
9.Em uma cena ela diz que o filho dela parece com o pai (se
referindo a ele?), nunca escutava ninguém, mas sempre gostava de ser escutado.
10.Para mim o
estopim é acena do restaurante. Os dois começam a compartilhar momentos íntimos,
inclusive ele parece lembrar de algumas coisas. E incrivelmente, indo de
encontro ao que a mulher disse na cafeteria, ele alterna entre inglês, francês
e italiano fluente. Mostrando que ele fala e entende sim as outras línguas, só
parecia que “não lembrava” ou algo assim.
11.É nesta mesma
cena que eu acho que sai a pista mais importante para entender o filme. O escritor
lembra de um ocorrido 5 anos atrás, que a esposa parece que dormiu ao volante
ao dirigir a noite. Ele fala isso numa retórica argumentativa digna de um
Oscar, por sinal. Mas pela minha interpretação – okay, é uma viagem sem
tamanho, eu admito – mas me parece que neste dia houve um acidente. E foi neste
acidente que o marido perdeu a memória. Sim, pra mim ele tem um problema de
memória que o faz esquecer da família, e só devidamente estimulado (como faz a
mulher ao longo do filme) é que ele lembra algumas partes da sua vida marital.
12.Outra pista é
quando eles estão nos degraus da pousada onde passaram a Lua de Mel. Ela
pergunta o motivo dele não ter feito a barba naquele dia, e ele responde com a
mesma história que a mulhertinha
contado a dona da cafeteria. Que ele só se barbeava a cada dois dias, por força
do hábito. Eis a prova de que ele realmente era\é o marido dela.
13.No final do
filme, quando a mulher leva o escritor na pousada e pede pra ele olhar pelas
janelas, pedindo que ele se lembrasse (acredito eu) da história que ele tinha
contado na cafeteria sobre a mulher e o menino que subia a rua. Mas ele não se
lembra, e fala uma coisa importante, ele fala algo assim: eu não consigo me
lembrar, você sabe que eu não consigo, não me force dessa maneira. Então
aparece ele no banheiro, mesmo banheiro que na história ele falava que tinha a
tal janela pela qual ele olhava a mulher e o menino subir a rua.
Bem, e aí acaba o filme. Ele olha pelo espelho do banheiro a
janela, o sino tocando no final da rua e parece incomodado, aflito! Como se
tivesse a sensação de que deveria conhecer tudo aquilo, mas não consegue
lembrar. O filme termina com ele mais uma vez passando a mão no cabelo
incomodado. O coitado não conseguiu lembrar de quem ele era (ou deveria ser),
da mulher nem do filho. Pelo menos não conscientemente nem por completo. A
memória dele parecia funcionar por flashes
apenas. Numa cena ou outra ele falava ou entendia o idioma da mulher, tratava-a
como esposa, lembrava do filho... No outro momento ele tinha se perdido
novamente.
É certo que a maioria das pessoas acharam a Juliette Binoche
irritante, às vezes rude até. Mas eu não. Achei ela uma santa. Resignada. Cheia
de temperança. Esperando ali a cada lugar que iam, a cada palavra que ela
falava, que o marido lembrasse dela. Nem que às vezes ela tivesse que ir lá
dentro e arrancar a memória deles dois do espaço turvo da amnésia do marido.
Ela chorava a todo tempo um choro de lembrança, de saudade. E ele... simplesmente
era uma cópia fiel de quem um dia ele
foi. A mulher estava ali tentando provar que o original dele estava perdido ali em algum lugar.
Filme incrível. Recomendo fortemente.
Aldrêycka Albuquerque
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