"Este retrato. Acho que você gostaria de ficar com ele", disse Pedro a Julia. Era uma foto dela quando criança, talvez quatro anos, ou cinco. Ela o dera a ele quando se apaixonaram, e escrevera em sua letra infantil e inclinada para trás: "Repare nos olhos. Eles mostram que eu já estava apaixonada por você, e que iria te amar para sempre". Era uma foto em preto e branco.
Pedro lera um dia um conselho de um mestre zen. O mestre dizia que a gente deveria conservar perto de nós uma foto nossa de criança, para lembrarmos para sempre os dias em que não havíamos sido, sei lá, corrompidos pela vida e nem tinham sido destruídos nossos sonhos e crenças e ilusões. Ela releu o que escrevera naquela foto.
"Eu ... eu só tinha olhos para você, Pedro. Aquela música que você ouviu numa época sem parar. Acho que se chama I Only Have Eyes For You. Se você me dissesse para me atirar do alto de um prédio, eu me atirava. Você foi meu... você foi meu tudo, Pedro."
"Outro dia li uma frase que me lembrou o papel que tive a seu lado", disse Pedro. "Não me lembro exatamente as circunstâncias. Imagino que tenha sido um sábio grego, mas pode ter sido um guerreiro romano. O cara disse: fracassei, mas tentei. É uma sentença que simboliza a imagem que tenho de mim com você. Fracassei, mas tentei."
"Tentou o que, Pedro? Eu seria capaz de me matar por você. Você não perderia um jogo de futebol por mim. Eu sempre me senti tão pequena diante de sua preocupação com a carreira. Carreira primeiro, carreira segundo, depois eu."
"Eu fiz o que consegui fazer", disse Pedro.
"Pedro, Pedro", ela disse. "O que vai ser de nós? O que vai ser de mim? Você foi minha vida. Me sinto tão perdida. Onde foi que nos perdemos de nós mesmos? Olha o que estava escrito na foto. Era para sempre, Pedro."
"Li um texto num blog outro dia. Era uma citação latina. O que não é destruído pelo tempo?"
"Eu tinha certeza de que nós não seríamos", ela disse. "Deus, como eu era tola ... ou pretensiosa. Nós éramos tão diferentes de tudo, eu pensava. Tão, tão, sei lá, tão melhores. E olhe o que restou de nós. Nós teríamos olhos apenas um para o outro. Era isso que ia acontecer, não era? Mas o tempo mostrou que ninguém tem olhos apenas para uma pessoa. Isso é ficção, não é? E ficção ruim."
"Fomos derrotados pelo tempo", Pedro disse. "Mas ganhamos a guerra da posteridade."
"Posteridade?"
"Napoleão em Santa Helena. Batido, sozinho, doente na ilha. Ele não tinha mais a espada, mas uma caneta. Escreveu suas memórias não para ganhar o mundo outra vez, mas para conquistar a posteridade. Era a batalha mais importante dele. Mais crucial que Waterloo. O que estava em jogo era o que o futuro diria de Napoleão, e para sempre. Ele venceu a guerra da posteridade."
"Napoleão, guerra. Pedro, você me parece às vezes tão fora do mundo. Estamos falando de nós. Tentando escrever o obituário do nosso amor, a cronologia do nosso naufrágio, e você me aparece com o Napoleão em Santa Helena? Napoleão conforta algum coração partido, Pedro? Você inventou um novo uso para o Napoleão? Você é criativo a esse ponto, Pedro?"
Ela tinha razão, Pedro pensou. Não era hora para trazer Napoleão e sua guerra épica pela posteridade para a conversa. Era confuso. Napoleão em Santa Helena. Mas, mas havia sim uma lógica na história napoleônica que aparecera na conversa entre os dois, pensou Pedro.
Há momentos em que o que resta aos amantes é a luta pela posteridade. Pelo que pensarão um do outro, e dos dois juntos. Quase sempre se perde essa luta. Resta raiva, rancor. Algumas poucas vezes se ganha, e as recordações que ficam aquecem noites geladas.Pedro achava que Julia e ele tinham vencido a luta pela posteridade, mas admitia que explicar isso era demasiadamente difícil. Viu-a colocar a foto que lhe dera na bolsa, e despediu-se.
Texto do Fábio Hernandez retirado da revista "Criativa".
Relações serão sempre confusas e intensas, sabia? Só mudam o endereço, a língua que falam, a boca que beija...
Bjs